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[FRANCA MENTE] A URGÊNCIA DAS QUATRO HORAS

Por Francine S. C. Camargo •
domingo, 9 de junho de 2019


Até queria chegar mais cedo, mas enquanto o relógio ao pulso desvelava lentamente as horas, ela se ilhava em seus pensamentos desconcertantes e quando se via, já era passado tempo: a vida, ao longe da sua imobilidade, avançava. E hora, é sabido, não fica ao lado da gente, mas sim, tremula os cabelos tal como vento urgente e sem freio.

Por isso perdeu o trem da despedida na estação, quando não desatava se era luxo de saudade ou escabiose da alma, por não conceder ficar só. No fim, restituiu-se à antiga viela e permaneceu quieta, afincada num canto mais omisso que suas lágrimas.

Foi pela mesma prerrogativa de desapego ao tempo escoado que não entendeu quando o Sol acabara de surgir, deixando a noite como lembrança recuada. Tudo havia prometido à noite que vinha, mas arrojo não teve de deixar também que a escuridão caísse por sobre ela.

Quando todos se satisfaziam em risos, ela averiguava o momento certo e o sorriso não saía, pois, os demais já eram idos e o que ela não queria, em nenhuma instância, era sobrar-se em alegria. O medo de soar caricata convertia-se em sisudez e, feito esfinge, ela preferia ficar ali de rosto vazio.

Privou-se de cantar os parabéns. Livrou-se dos votos de eternidade e não compareceu a tempo de decidir carreira ou dizer o sim. Até hoje, desenhou trajetória de oportunidades e não completou o circuito, tornando-se inescrutável, uma mulher a quem ninguém espera.

Decerto foi isso que lhe acotovelou o espírito. Ela precisava que aguardassem a sua chegada.

Evitou, então, piscar os olhos, mal teve tempo de engolir o café requentado, calçando os sapatos às pressas e perfumando a pele, dessa vez, com a transpiração da iminência, de tanto que acelerou os passos.

Correu o mais que pôde até perder não só a noção de tempo, como também a do espaço em que se achava. Não importava. Tinha que chegar.

Se havia alguém numa extensão alguns passos ou quilômetros à frente a procurar por ela, não saberíamos dizer. Entretanto, foi bem aqui que ela parou: o relógio da praça alardeava as quatro horas.

Uma criança de corpo mirrado quase não sustentava o corpo de tanta fome. Um homem com o rosto lavado em pranto assinava sua última carta, murmurando um nome só seu. Um desses seres sem rosto insistia em seu violino a chorar uma toada de amor. Uma garota rosada e de olhar abrasador aconchegava a visão em um romance nas páginas de um livro amarelado.

Mas quando ela, a mulher insondável, gritou, a paisagem se alterou, bem como cada intenção:

– Cá estou eu!

E não houve despedida, tampouco fome; a leitura não foi finalizada e a música se acalmou.

O momento era dela e, sem conhecimento anterior, era por ela que todos ansiavam. E, por alguma razão ignota, mesmo sem relógio, foi essa a primeira vez que ela, a abismal mulher, chegou à hora exata.

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