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A REVOLUÇÃO DOS LIVROS

Por Francine S. C. Camargo •
segunda-feira, 24 de setembro de 2018


"Sempre imaginei que o paraíso fosse uma espécie de livraria."(Jorge Luís Borges)



– Oi, pessoal! Tudo certinho? Acabei de chegar…
Lá vinha ele, vermelho, capa dura, com letras douradas, um tanto puído, cheiro de gasto. Provavelmente foi muito aproveitado, teve seus momentos. “Deve ter sido acarinhado por muitas suaves mãos”, pensaram todos os outros, com certa cobiça.
– Vim fazer uma visitinha, passar um tempinho com vocês.
– Coff coff – afastou-se do canto da prateleira um senhor de mais idade, preto, dizeres apagados, com dobrinhas mínimas em sua base. E que ninguém ousasse chamá-las de orelhas! – você tem certeza disso?
– Mas é claro! – respondeu Capa Dourada, com um ar de dúvida, afinal que zombaria era aquela?
Observando bem, estava num recinto distinto dos que já frequentara. Era uma estante bem grande, com prateleiras sem fim e todos seus companheiros ficavam tão juntos, que mal pareciam respirar, nem conseguia apontar direito quais eram suas origens, línguas, se versavam ou proseavam, ou mesmo a qual século pertenciam. Não que estivessem em desordem, mas eram tantos e de todas as espécies possíveis.
– Oi. Seja bem vindo. Você pode entrar aqui comigo – disse uma senhora de capa fina amarela, título negro bem visível, apontando um ínfimo espaço do seu lado direito, onde ele teria que se espremer muito para caber.
Mas outras ofertas vieram, em todos os cantos altos das prateleiras, de todos os tamanhos e cores. Era difícil decidir.
– Muito obrigado a todos! Estou impressionado, vocês são tantos, nunca vi nada semelhante. Deve haver aqui um rodízio constante, um mover-se diário de vocês, não é mesmo?
Alguns se olharam silenciosos, outros cabisbaixos, trocaram somente grunhidos.
– Você não sabe? – explicou Capa Amarela, acompanhada por vários outros que balançaram suas páginas em reprovação – nós todos estamos aqui há muito, muito tempo. Chegamos um a um, alguns vieram das lojas, outros pelo Correio, mas a maioria de nós chegou aqui sendo…bem, nós fomos…digamos assim…emprestados!
E desatou a chorar, tendo sido acolhida por uma jovem colorida, sem letra alguma.
– Mas qual é o problema em ser emprestado? Eu fui emprestado e estou adorando a ideia de passear, conhecer olhares, mentes e toques diferentes – insistiu Capa Dourada.
– O problema é que estamos na fila há muitos e muitos anos e nada de sermos apanhados. – disse um elegante Brochura azul e laranja, com as letras minúsculas – Ficamos aqui, tentamos chamar a atenção de qualquer um que passe, mas o único prazer que sentimos são as cócegas que o espanador nos faz diariamente.
– Como assim, você está querendo dizer que ninguém os lê? E por que não os devolvem, então?
Ouviu-se, em seguida, um emaranhado de vozes, todas indignadas, inconformadas e praguejando contra esse abandono voluntário, tentando explicar o que sequer entendiam. O fato é que formavam uma bela coleção, não importando mais a quem pertenciam. Reclamavam ser lidos, mas, em vão, subsistiam como adornos.
– Isso não pode ficar assim – finalizou Capa Dourada – tive uma idéia!
E depois dessa comoção, todas as noites, um a um se apresentava para os restantes, com trechos de suas histórias. E isso poderia durar por muitos e muitos anos, sem que suas aventuras se repetissem. Contos, novelas, fábulas, crônicas, romances, antologias, biografias, épicos, nada era excluído.
– “Escrevo diante da janela aberta…minha caneta é cor das venezianas…”
– “Meu nome é absurdo também…”
– “Tirando o rosto lacrimoso e as mãos desfalecidas, nada se lhe alcança a ver do corpo…”
– “De primeiro, eu fazia e mexia, e pensar não pensava…”
– “Não, não sei por que tive vontade de rever coisas de minha vida, de ver como eu era antes de conhecer você…”
– “O dia passara como normalmente passam os dias…”
E foi assim que se disseminou a idéia em todas as estantes do mundo. Pois eles não estão mais esperando por nós. Tem vida própria e alcançaram sua plenitude dividindo uns com os outros suas próprias mensagens.

Comentários via Facebook

12 comentários:

  1. Ana Caroline Lima Espindula29 de setembro de 2018 05:03

    Olá!

    Adorei o diálogo entre os livros, uma pena os livros de capa dura não serem tão produzidos quanto antes, eles são ótimos e duram mais tempo!

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    1. Francine S. C. Camargo8 de outubro de 2018 22:51

      Olá, Ana Carolina. Concordo com você, livro de capa dura dá uma alegria, um cheiro e um aspecto diferente na estante. Obrigada pelo carinho.

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  • Oi.
    Infeliz e triste essa realidade dos livros. São tantos livros que queremos ler e tão pouco tempo, não é mesmo? Eu mantenho em casa somente os livros que vou querer reler, os demais eu estou repassando para que outras pessoas tenham as experiências que eu tive.
    Adorei o texto.
    Beijos.

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    1. Francine S. C. Camargo8 de outubro de 2018 22:53

      Oi, Barbara. Obrigada pelo comentário. Acho que livros foram feitos para serem lidos. Se serão repassados de geração em geração, doados ou emprestados diversas vezes embora o dono se mantenha o mesmo, não importa. O interessante é que eles se propaguem, não é? Beijos.

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  • Aline M. Oliveira4 de outubro de 2018 13:21

    Oi! Gente, amei o texto! Cheguei a ficar com dó desses livros esquecidos e amontoados nas estantes por aí.. Quem gosta sabe que uma hora ou outra acaba acumulando uma pilha a ser lida.. Vou parar com isso.. Aquele papo velho de tentar ler e adiar compras.. Amei o texto!

    Bjoxx ~ www.stalker-literaria.com ♥

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    1. Francine S. C. Camargo8 de outubro de 2018 22:54

      Oi, Aline. Que legal que gostou. Esse papo velho de ler o que tem antes de comprar...conheço bem, promessa antiga...hihihi. Beijão.

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  • Oie, comecei a leitura sorrindo e terminei toda triste haha. Isso é algo muito doloroso, eu adoro livros de capa dura e eles sao produzidos com tao pouca frequencia que isso me entristece demais, de verdade.

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    1. Francine S. C. Camargo2 de novembro de 2018 19:34

      Oie, Dayhara. Em meio a crises em editoras e livrarias, a nós, que gostamos tanto de livros, só nos resta lamentar e contribuir para que, ao menos, ao nosso redor, isso possa ser revertido.

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  • Olá!
    Que leitor não gosta de livros de capa dura né?
    Mas até entendo que cada vez menos estejam sendo comercializados, sempre há uma diferença grande no valor final do produto e as vezes não cabe no orçamento do leitor.
    Amo meus livros na estante, mas confesso que não gosto de emprestá-los porque ninguém tem o mesmo carinho e cuidado que nós.
    Beijos!

    Camila de Moraes

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    1. Francine S. C. Camargo2 de novembro de 2018 19:35

      Olá, Camila.Obrigada por passar por aqui. Confesso que não tenho problema nenhum em emprestar meus livros, mas não consigo me desfazer deles, além de ser uma ávida leitora, preciso vê-los na estante. Beijocas.

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