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LICENÇA À MALDADE

Por Leandro Salgentelli •
sexta-feira, 3 de abril de 2020
Créditos: TecMundo

NÃO SEI MAIS O QUE FAZER com o tempo ocioso em tempos de Pandemia. Meu corpo não se acomoda nos cômodos de casa. Assim como tem sido difícil controlar o pensamento quando estamos diante da incerteza. Sento, levanto, deito, assisto, leio e não me conformo. Meu irmão me olha e diz: está sendo difícil conviver consigo mesmo? Fisgo, chego a invejar sua tamanha serenidade.

 Está difícil de lidar com o meu próprio eu. O que me espanta, pois a vida que levávamos era álibi para fugirmos da introspecção? A rotina que tínhamos nos impedia a reflexão?

 A nossa liberdade ficou restrita. Estamos todos impossibilitados a ver a arte, a desafogar a angústia na mesa de bar, no cinema, nas aglomerações que submetíamos de sexta-feira para sábado. Estar preso hoje nos deu a liberdade de enxergamos a nós mesmos — a contra gosto. Todos terão que se enfrentar.

 Por outro lado, cientistas apontam que a vida a partir de agora nunca mais será a mesma. Teremos que lidar com a degradação que viemos cometendo há décadas com a natureza. Ou mudamos a maneira como consumimos ou não haverá vida.

 Mas não era sobre isso que estava falando, não é mesmo? (Está vendo, o tédio tem alimentado minha dispersão.) Estava falando da prisão que fomos incumbidos por causa de um vírus estrangeiro que agora se alastra pelo mundo todo.

 Quem não acreditava teve que lidar com as mortes à sua frente. Em tempos de fake news, me surpreendeu os fatos darem um passo à frente à verdade. Esse mal contagioso é rasteiro deixa lastros de mortes por onde passa. E o mundo se vê vulnerável, incapaz de lidar com a inconstância da vida.

 Nesses tempos ociosos pude observar ainda mais o cotidiano infundado, e cheguei à conclusão o quanto a maldade muitas vezes é invisível aos nossos olhos. Ouvi pessoas dizendo que ficavam aliviadas por saber que o mal contagioso atingia mais os idosos do que as crianças, “é que eles estão no fim da vida”. Ouvi, também, falarem que a economia não pode parar por causa de oito mil mortes, e que, morrem muito mais pessoas por fome no mundo do que pelo mal contagioso. Do dia para a noite, a morte por fome se tornou importante, engraçado, não é mesmo?

 Percebo que a racionalidade está muito ligada à maldade. Elas andam juntas. Para um racional mortes são apenas somas matemáticas, um mais um é igual a dois e dois mais dois é igual a quatro.

 Licença à maldade foi isso que ouvi, de Lya Luft, em seu livro A Casa Inventada, em mais um dia que sobrevive ao tédio. Narrada por Pandora, que por ora, era ela mesma, indagou que quando criança, sem saber direito, conseguia ser má, como esticar as minhocas, rebentá-las em duas para enfiar no anzol de alfinete quando tinha seis anos e pescava com seu pai no lago ao fundo de sua casa, e que, logo vinha a sensação: então agora é permitida essa maldade? E indignada ressaltava: “Depois cortar a cabeça do peixe, o olho dele me fitando tão humano. A gente às vezes tinha licença para ser cruel?”.

 De fato, a violência é muito mais dramática ao nosso redor. A maldade, muitas vezes, é tão invisível quanto esse mal contagioso. Ele passa despercebido, alcança nossos ouvidos, infiltra o nosso corpo a ponto de transmitirmos novamente aquilo que nos foi dito. Até que se tem uma aldeia infectada por essas mesmas palavras.

 A maldade é como esse mal contagioso que não se importa com o senhorzinho que foge de casa para comprar pão e, sem mais nem menos, morre dias depois, deixando famílias desoladas, afoitas na tentativa de entender como tudo aconteceu.   

 Ele tinha família, ele tinha filhos, netos; tinha história, sabia?  

 A licença à maldade percorre ruas, atravessam cidades, países, corpos. Para identificá-la basta que tenhamos um mínimo de moralidade e ética.

 E como evitar o contágio? Apurando os ouvidos e boca, observando o entorno. Não fazendo visita ali ou acolá. Só se mata um mal se preservando.

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