Entre contemplativa e autônoma em sua caminhada, jogaram-lhe diante de si um ser repugnante: um rato. Esse impacto violento para o qual não estava pronta leva, na verdade, a uma reconstrução de si mesma. E para se reconciliar com o mundo, com Deus e consigo mesma, talvez seja necessário cometer seus próprios crimes.
A CENA É SÓBRIA E DESNUDA: uma mulher caminha pela avenida Copacabana, tentando ser algo que poucos conseguem. Essa mulher dedica-se a ser livre.
O personagem anônimo de Clarice Lispector, em FELICIDADE CLANDESTINA, no conto Perdoando Deus, figura em seu monólogo interior e abre a demanda para novas inspeções da realidade.
Essa mulher sente-se livre ao perceber o mundo ao redor e repara que tal ato mal precisa de suor. Prestar atenção nas coisas é passivo, já que em um curto momento de epifania, torna-se ela responsável pelo mundo.
Eis que essa mulher pisa repentinamente em um ser grotesco, seu oposto: um rato morto, “morto, quieto, ruivo”. Maior assombro não poderia existir e a fuga é ulterior. Mas essa mulher continua a viver.
Pega desprevenida, ela se sente insultada, devastada, presenteada com brutalidade por um deus zombador, que lhe mostra que não seria tão fácil assim assumir o mundo, amar a tudo, inclusive ao desconhecido.
Ora, não poderia ser ela mãe do rato também?
Não, porque essa mulher não sabe ceder, embora tenha que lidar, daqui para a frente, com o real, ela que, até então, sentia a plenitude com o ilusório, com um mundo inventado.
É porque ainda não sei ser eu mesma, e então o castigo é amar um mundo que não é ele.
Ela julga ter intimidade com o mundo. Mas sequer o conhece, sequer o aceita. Como amar o mundo, como amar um rato, como amar um deus se essa mulher está contida e sonegada? Se não aprendeu a amar a si mesma?
Como posso amar a grandeza do mundo se não posso amar o tamanho da minha natureza?
Pois aprende, sem solicitação, que o amor vem do oposto, da incompreensão, do reconhecimento das fraquezas.
E uma voz grita incorporada: é possível alcançar a essência se essa mulher entrar em contato com a carne, com sangue, com vida extinta, mesmo que seja sob a forma de um animal repugnante. Como amar o belo sem antes legitimar o feio?
É Deus a projeção daquilo que essa mulher não aceita em si mesma. É tempo, portanto, de aquiescer e, diante da morte defrontada, reintegrar-se com a vida. Não é preciso, contudo, carregar o rato nas mãos, muito menos provar de sua matéria. Admitir o seu asco, porém, é uma maneira de permitir que seus crimes sejam cometidos, sem negar seus impulsos.
Também nós caminhamos por avenidas distintas, contemplando o inexplicável. Tentamos ser livres, onipresentes e pais de tudo que existe. E diante do medo e desapontamento, damos um novo sentido à realidade. Embora nós o façamos com uma sensação momentânea de que a vingança seja capital. Passada a ira, o que vem a seguir é uma reinvenção de nós mesmos. E, mesmo trêmulos, continuamos a viver.
Por: Francine S. C. Camargo
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