Destaques

[FRANCA MENTE] A DONA DO VERBO

Por Francine S. C. Camargo •
domingo, 13 de outubro de 2019


Era uma vez uma garotinha que não se fazia entender por palavras. Isso mesmo. Emitia o som em porte adequado, desfrutava de acertado vocabulário, pronunciava-se em relação a qualquer assunto, falava mesmo pelos cotovelos e discutia, muitas vezes, com a própria imagem ao espelho. Mas, curiosamente e ninguém sabia explicar o porquê, não se podia compreender o que ela dizia, por maior que fosse o seu entusiasmo ou a disposição e empenho do interlocutor.

Apesar desse detalhe quase irrelevante da falta de comunicação, ela continuava senhora de si e expressava-se da maneira como conseguia. Experimentava verdadeira paixão pelos vocábulos, enxergava letras no ar e tentava apanhá-las, em fantasia, para formar seu nome. É fato que preferia o A e o M, tinha certo medo do Z e do H e ria-se toda quando o I ensaiava sair de sua boca.

Complicado era decifrá-la quando seus olhinhos aflitos algo solicitavam, quando esperava por uma resposta. Chorava um pouquinho, mas em seguida, novamente um turbilhão de frases saía de si, para talvez um dia fazer sentido.

Muitas vezes, solicitou à mãe que comprasse a ela uma nova voz ou algum chá de entendimento no mercado, na loja da esquina, no centro da cidade, na loja online da China. Não era possível, em algum lugar deveria haver a sua solução em troca de algumas moedas! Mas sua mãe não achava em parte alguma.

Até que em um dia, a menininha se enfastiou e resolveu parar de falar, se é que de fala podemos chamar a sua constante tentativa frustrada de conversação. Cerrou os lábios, cruzou os braços e negou-se a ser a pseudo-tagarela de antes. Todos, obviamente, estranharam esse comportamento de resistência e aprisionamento de si mesma. Porque, ao não se importar mais em se fazer ouvir, ninguém mais sabia como acessá-la.

Os dias se tornaram mais silenciosos, solitários e menos inesperados. Perdeu-se o decifrar e até o humor encoberto que pairava ao redor daquelas palavras ininteligíveis. E eis que o mundo que a cercava calou-se junto com a garota.

Silêncio. Silêncio. Silêncio. Não, assim, já era demais! Tudo bem ela não falar, mas ninguém mais??? Não, isso não estava certo. Foi o que ela pensou ao olhar para cima, para os lados, para frente e para trás e enxergar todos tão aborrecidos, lastimando a transformação da criança, de barulhenta para taciturna.

– Ei, vocês! Parem com isso! Ninguém mais vai conversar comigo?

Silêncio. Silêncio. Silêncio.

– Ora bolas! Como se fizesse algum sentido o que estou dizendo!

Os rostos e expressões de todos próximos a ela denunciavam: o que fluía dela tinha sentido sim. Naquela hora, a menininha sem palavras dava lugar à chefe interina das orações e não havia pessoa no mundo que não distinguisse cada letrinha de suas sentenças.

E eis que, desse dia em diante, qualquer um, vindo inclusive de terras distantes, vinha curvar-se diante dela e ouvir o que a voz mágica da pequena dona do verbo tinha a manifestar.

(Feliz dia das crianças a esses seres de luz própria, que encantam tanto com palavras quanto com seu silêncio, e que, ao mesmo tempo que nascem, também nos reavivam e despertam uma nova maneira de escutar, um olhar particular para cada ato, um novo apetite pelo amanhecer.)

Comentários via Facebook

0 comentários:

Postar um comentário

Deixe sua opinião para nós do Refúgio Literário

Publicidade

iunique studio criativo

Instagram

    © Refúgio Literário – In Livros