“O cérebro é o meu segundo órgão favorito.”
– Fique quieto!
– Você precisa me escutar...
– Não. Não quero ouvir.
– Não me deixe aqui sentindo tudo sozinho...
– Chega! Você não manda mais aqui.
E virou as costas, desviando seu caminho. O parceiro de tantas paixões, amigo Coração, ficou ressabiado dentro do seu recanto. Foi designado a ele que não saísse de lá, que não exercesse mais função afetiva e continuasse seu trabalho habitual de tocar o sangue para frente, bombear sem titubeios, definir o fluxo, deixar passar, sendo somente motor, apesar de seu potencial eminente.
“Quando se amarra bem o próprio coração e se faz dele um prisioneiro, pode-se permitir ao próprio espírito muitas liberdades.”
Se era o espírito ou razão que a controlariam, ainda não sabíamos nesse momento da história. O que ficou bem claro, fato consumado em sua totalidade, foi que apesar de cheio de água vermelha, o Coração ficou oco, dolorido em sua umidade. Fora deixado em paz, mas paz mesmo não encontrou. Esse golpe não esperava.
Cabreiro e abandonado, foi posto de lado pela primeira vez na vida. Sempre fora o Conselheiro-mor., o primeiro a ser inquirido, o autor da palavra final. Ela seguia o que o Coração mandava.
O que você sabe, Coração?
Ele sempre sabia, mesmo não entendendo. Acertava até quando só palpitava, de palpite mesmo e, às vezes, de palpitação, quando a adrenalina o subjugava. Queria só dizer a ela que não esquecesse o amor, mas teve as portas trancadas.
No entanto...alguém chegou para assumir o posto.
“Ninguém se mexe! Meu cérebro caiu” 1
– Deixe eu colocar ordem no recinto.
– Sim, sim, a casa é sua agora.
– Sempre foi, minha querida, sempre foi. Mas deixei você se iludir um pouco, pois sabia que no tempo certo voltaria para mim.
– Nossa, fui tão imatura que me envergonho disso.
– Sim, é hora de se envergonhar mesmo. Mas vou cuidar de tudo.
E foi assim que o Cérebro, aquela figura amedrontadora por ser tão dono de si, altivo e colossal mesmo com sua pouca estatura, pisoteou fortemente nos vestígios de amor jogados ao chão a fim de não os deixar mais tomar vida.
– O resto é só apêndice.
Eis que se estabeleceu a partir disso a dinastia da Razão. Abaixo os medinhos! Abaixo as lágrimas! Abaixo os sentimentos abafados! Abaixo a cegueira! Abaixo os mergulhos em abismos! Abaixo as gotas d’água e os desfechos de festas, Chico.
2
– De hoje em diante, é permitido ser ambíguo e transformar. É permitido deixar ir. Pode-se esquecer, mas não se pode confiar em demasia, somente em si mesmo. É permitido deixar morrer e seguir adiante. Não é aceito mais ficar no mesmo lugar. É obrigatório expulsar o que não cabe mais: os anéis, os sapatos, as mágoas e os receios. Xô sensibilidade que destrói, que condena, que faz com que você pare a vida para se coitadizer!
Esse Cérebro era autoritário, mas sabia das coisas e suas regras eram para que ela se redimisse do passado e abandonasse seus pesares. Não era de todo mau, buscava somente ajeitar a casa.
Só que quando tudo parecia novamente calmo, sem ondulações, não foi fácil fingir que ninguém chamava...
– Ei. Olha para cá.
– Hein?! – Ela não entendeu.
– Olha aqui para dentro. Acorda, vai.
Como ela não era mais responsável pelo que acontecia lá dentro, embora estranhasse aquela solicitação, não se preocupou em responder. Quem o fez foi o Cérebro.
– O que você quer?
– Quero sair.
– Para quê, amigo? Não há nada a ser feito por você aqui fora.
Coração e Cérebro estavam longe de ser amigos nessa fase, a rivalidade clamava por briga, eles guerrilhavam em silêncio o tempo todo. Quem dominava era o Cérebro, mas Coração esperava sua vez.
Era sua hora. Bateu forte, cada vez mais veloz.
Tum-ta. Tum-ta. Tum-ta. Tum-t. Tum-t. Tum-t. Tum. Tum. Tum. Tu. Tu. Tu. T. T. T.__________________________________________________________________.
Até fazer silêncio.
Ouviu-se ao longe:
– Paradaaaaaaa!!!!
E deram início à reanimação.
Enquanto massageavam e o Coração voltava a funcionar artificialmente, o Cérebro implorava:
– Volta, amigo. Preciso de você.
– ...
– “Só se vê bem com o coração, o essencial é invisível a razão” – parodiou O pequeno Príncipe, o Cérebro em desespero.
– ...
– Abre, Coração, ou eu arrombo sua janela!!!! 3
– ...
– Juro que me adapto para escutar aquilo que você já sabia antes de mim.
– ...
E, como última tentativa, buscou na memória contida em si, algo que a dona daquele corpo lera em algum momento. E gritou chorando:
“Não há nada que esteja menos sob o nosso domínio que o coração, e longe de podermos comandá-lo, somos forçados a obedecer-lhe.” 4
– Tum-ta............tum- ta.............tum-ta...........
– Vem governar comigo...
– Tum-ta. Tum-ta. Tum-ta.Tum-ta. Tum-ta. Tum-ta...
Sucesso na reanimação, o retorno da vida foi comemorado.
Mas ninguém adivinharia o que se passava lá dentro. Na guerra nada fria e sim efervescida que havia se desenrolado, ninguém venceu, por fim. Minto, quem venceu foi ela, a proprietária dos órgãos, que de um dia para o outro teve sua vida organizada, ora com bom humor, ora com vontade de sumir; ora cultivando flores, ora dando ouvido aos livros; ora ficando em casa, ora vivendo a vida lá fora. A única condição essencial estabelecida foi fazer tudo isso com todo o seu ser, em sua plenitude, o que, nesse caso, significava “de coração e cérebro”.
E quando o Cérebro já irritado enlouquece com algumas das opiniões do Coração que são contrárias às suas, ele implica novamente:
O que você sabe, Coração?
E ele responde, com a leveza de quem partiu e voltou, com a sabedoria de quem não pode mais ficar sozinho:
Sei o tanto que você sabe, Cérebro. Só que banhado de amor.
APÊNDICE:
1. Frase de Jack Sparrow, em Piratas do Caribe.
2. Música Gota d’água, de Chico Buarque.
3. Chico Buarque novamente. No original: “Abre o teu coração ou eu arrombo a janela”
4. Frase de Rousseau.
Oi Fran!
ResponderExcluirTudo bem? Adorei o texto, realmente esse embate entre razão e sentimento é uma coisa que acontece muito, no meu caso na maioria das vezes ajo de acordo com o meu cérebro porque sou uma pessoa muito racional para ser levada pela emoção e quando acontece acabo me ferrando, então sabe como é né: gato escaldado...
Infelizmente não acho que meu coração saiba o mesmo que meu cérebro e tenho que dizer que, sem dúvida, ele não toma as melhores decisões. Enfim, o texto é maravilhoso e cheio de reflexões interessantes.
Beijinhos - Jessie
www.paraisoliterario.com
Oi, Jessie, tudo bem e você?
ExcluirObrigada pelas palavras...você vai ver, como diria a canção de Toquinho "que o certo você vai saber errando, errando, errando...". Deixa seu coração ganhar esse embate de vez em quando.
Beijo.
Olá!
ResponderExcluirAdorei o texto cheio de boas referências, bem escrito, recheado de boas reflexões!
Parabéns pela postagem!
Eliziane Dias
Obrigada, Eliziane, muito obrigada pelos elogios. Beijão.
Excluir